por Armando Coelho Neto

Há evidências, advindas de variadas frentes, que sinalizam um mergulho da sociedade no primitivismo. Nas artes plásticas, uma exposição é impedida de se realizar por que estaria associada a práticas sexuais “incorretas”. Na religião, um País outrora orgulhoso da convivência harmoniosa dos diversos credos passa a testemunhar episódios de intolerância. Na educação, descontextualizar o estudo dos episódios históricos para que deles não se extraia nenhuma conclusão política “perigosa” virou obsessão de muitos.

Mais: querem acabar com as cotas no último País do mundo a abolir a escravidão, localizado no continente em que os povos pré-colombianos foram dizimados pelos conquistadores europeus, como se não houvesse racismo contra os índios, pardos e negros. Curiosamente, a ciência passa a “dialogar” com a não-ciência (como se convivessem no mesmo patamar de racionalidade), por que acreditar que o planeta Terra é um corpo tridimensional ovalado (e não um plano achatado em torno do qual o Sol orbita) ou na evolução das espécies (e não no criacionismo) passou a ser uma questão de mera opinião.

Em meio a tal conjuntura de completa imbecilidade, o frívolo e narcisista Donald Trump é eleito o Presidente da Nação mais poderosa do Globo (ou do “plano”, conforme a “corrente” a qual o leitor se filie). No solo pátrio, não surpreende que um arremedo do folclórico tirano figure em segundo lugar nas pesquisas eleitorais. Aliás, um candidato que defende o fuzilamento dos organizadores da exposição “Queermuseu”.

Que forças estariam atuando para tamanho retrocesso civilizatório? Seria um paradoxo empregar um pensamento superficial para resumir a causalidade vasta desse fenômeno. Além de tal postura encerrar uma óbvia contradição: explicar um reducionismo valendo-se de conceitos estreitos. De qualquer forma, alguns apontamentos podem ser úteis para iniciar uma compreensão.

No Brasil, a transferência de enormes contingentes populacionais do meio rural para os grandes centros urbanos impactou as relações sociais, para além da explosão demográfica, da favelização e da insegurança. A vida do povo era culturalmente ditada, nas comunidades provincianas, pela autoridade que se exercia pelo patriarcado, no seio das famílias tradicionais, e pelos padres, nas paróquias. Contudo, as rápidas transformações no mundo do trabalho, legadas pelos avanços dos transportes, das tecnologias informacionais, modificou a própria base de valores das classes econômicas médias.

Esse movimento tem fluido na direção de um crescente e exacerbado individualismo, sobretudo pelas imposições do mercado de trabalho, a se reinventarem a todo momento, e a só se realizarem via consumo. A pequena burguesia não consegue mais ter uma perspectiva coletiva de solução para os problemas sociais. Só atina com soluções individuais. E os pais das gerações X, Y ou Z certamente não treinarão seus filhos senão para serem ilhas ainda mais isoladas, em um arquipélago de outras ilhas singulares.

Os internautas que navegam solitários nas redes sociais seguem o mesmo caminho das academias de ginástica, hoje abarrotadas de narcisos tirando “selfies”. Ambos, na prática, não passam de caricatura de uma sociedade disfuncional, mergulhados na egolatria, perdidos na escuridão das perspectivas coletivas de demandas sociais.

Sobre isso, não custa lembrar que aquele que não consegue pensar sobre a sociedade em um plano perspectivo, não tem aptidão para desenvolver nenhuma empatia sobre os seus semelhantes. É ou será, por certo, insensível diante da dor alheia. Eis a frenética dinâmica neutralizadora do senso crítico. Eis o evidente paradoxo com as sociedades maduras e desenvolvidas, nas quais a capacidade de questionar é indissociável de outros valores, como a Democracia. A propósito, onde o senso crítico é escasso, a opinião divergente não é apenas incompreendida e incompreensível: é vista como ou ofensa ou ameaça.

Este pode ser o começo da compreensão de como passamos a vivenciar “o império do senso comum”. Ele reduz a complexidade social e provê um enorme conforto psicológico. As comunidades ancestrais, frágeis diante das forças da Natureza, homenageavam divindades (confundindo os planos contrapostos do volitivo e do fático) para que caísse chuva ou para que a chuva não fosse abundante em demasia. As oferendas certamente não influenciavam a atmosfera, mas na ausência da Meteorologia, acalentavam a comunidade, diante da incerteza.

Constata-se, pois, que o aglomerado de indivíduos singularizados da pós-modernidade não precisa temer a intempérie. Mas na ausência de solidariedade, precisa desesperadamente se apegar ao senso comum, como desculpa para o ódio ao seu semelhante. Eis, na prática, o novo tipo de homens e mulheres criado a partir do hiperconsumismo. Um novo tipo, diga-se de passagem, que é vítima de sua própria ingenuidade. Traz como acentuada marca o moralismo vil, crédulos do Deus Mercado e ao mesmo tempo céticos em relação a qualquer forma de engajamento político.

Sob essa perspectiva, inatingíveis na possibilidade de recepção de contrapontos sobre sua própria realidade, estamos diante de uma massa facilmente moldada por quem detém a supremacia econômica (e, por conseguinte, dos meios econômicos e jurídicos que para ela operam). Muito ao gosto de quem disse alhures que o inimigo não seria tão forte, se não tivesse como aliadas suas próprias vítimas.

Esse texto é também uma reflexão sobre o desencanto no processamento da superinformação, e que não pode ser tratado como questão nacional. Vai além de nossas fronteias, mas ganha tons grotescos na realidade local.

O problema maior pode advir de quando não se realizarem nenhuma das promessas do “senso comum” (explícita ou implícita, centrada ou difusa). No caso específico brasileiro, quando da constatação de que as operações e processos penais midiáticos se revelarem inócuos diante da corrupção. Pelo contrário, vítima de sua própria ingenuidade, se deparar com a inequívoca instalação de corruptos no poder. O Brasil já tem uma amostra disso.

Como será se (ou quando) a venda do patrimônio do Estado e a destruição do sistema público de previdência e assistência social não foram capazes de prover nenhuma melhoria na vida dos cidadãos? Pelo contrário, se resultado for (ou possa ser) o empobrecimento e encarecimento dos serviços? E se (ou quando) o desinvestimento em saúde e educação redundar em sofrimento ainda maior para a população? A essa altura, na soma de decepções, o recrudescimento das leis penais (e do entendimento seletivo sobre sua aplicação pelo Judiciário), muito aquém das promessas, poderão fazer explodir a já caótica e insustentável realidade carcerária do País, possivelmente vitaminando a violência urbana via facções criminais.

Aí, em meio ao desespero reinante nesse império do senso comum, talvez precisemos redescobrir coisas ultrapassadas como ciência, humanismo, empatia, respeito à diversidade, participação política e Democracia.

Eis a reflexão dos sete delegados da PF que se opuseram ao golpe, ao desmonte do Estado brasileiro. Mas, o estado de exceção me obriga a assinar sozinho.