Pedro Augusto Pinho*

A questão que todos os brasileiros, que tem verdadeiro interesse no País, no seu futuro como a Nação, onde viverão seus filhos e netos, se põe é: o que fazer neste pântano onde os golpistas de 2016 nos lançaram?

Ouvem-se à esquerda e à direita manifestações de desagrado e revolta.

Mas as soluções, quando apontadas, parecem não cativar a população; a maioria do povo brasileiro, mesmo sofrendo, ainda não se aglutinou em torno de uma proposta, de um projeto para o País.

E sem povo, a legitimidade do apoio popular, sempre será um golpe, sangrento, camuflado por eleições fraudadas ou por outros mais sofisticados meios.

Sem que seja a verdade indiscutível, um bom começo é entender a sociedade brasileira de hoje. Diria melhor, as sociedades que habitam estes oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Quem são os brasileiros que receberão a assistência e proteção do Estado? Como chamar estes brasileiros para decidir seu próprio destino?

Candido Mendes, em sua pitoresca linguagem, diria que há no Brasil sociedades não coetâneas vivendo a mesma contemporaneidade.

Efetivamente, temos uma sociedade que está na mais antiga existência, em índios isolados na imensidão amazônica, que também são brasileiros e exigem nossa atenção. Temos também bolsões vivendo a escravidão, não só racial, mas da submissão absoluta ao poder tirânico de seus donos, e estes estão em várias regiões do País. E convivem com estas e outras sociedades os usuários das tecnologias PSD1, possivelmente PSD2 no próximo ano, para suas operações financeiras, como parte dos franceses, belgas, alemães e poucos outros.

E, quase sempre, a ótica imediatista nos conduz, tão somente, para as classes médias urbanas, aqui e alí alguma área rural e pronto. Faz-se para estes, se tanto, um plano de ação. Quando não, como os golpistas de 2016, que apenas operam para a banca e seus agentes.

Por outro lado, países continentais, como o Brasil – a Federação Russa, a República Popular da China, os Estados Unidos da América (EUA), a República da Índia – também populosos, multiétnicos, de Produtos Internos Brutos (PIB) superiores a um trilhão de dólares estadunidenses (USD), desenvolveram modelos institucionais distintos, quer pelas imposições coloniais quer pela evolução de suas sociedades.

Ao exemplificar com estes cinco países, já coloco algumas das restrições que nos impedem de buscar no estrangeiro um modelo: a extensão territorial, a população e a riqueza, medida por um indicador homogêneo. O acaso também mostra que estes países tem distintas concepções ideológicas, ou seja, não há uniformidade no pensamento político e institucional.

Portanto as referências tão comuns a países europeus ou americanos ou caribenhos não tem qualquer efetividade para usarmos como modelo a ser  adotado no Brasil. Cabe a máxima de Ortega y Gasset: busque-se no estrangeiro exemplos, nunca modelos.

Tentemos dissecar as sociedades brasileiras buscando denominadores comuns, objetivos que sejam amplamente aplicáveis, que não violentem uma parcela dos nossos irmãos nacionais em favor de outros, sejam eles majoritários ou, pior ainda, minorias privilegiadas, como ocorre, infelizmente, no Brasil – o país das desigualdades sociais, da imoral concentração de renda, da exclusão da maioria da população da participação decisória sobre seus próprios destinos.

Como preliminar, coloco que a importação ideológica – seja liberal, seja religiosa, seja marxista – será sempre redutora de um projeto abrangente, da efetiva construção nacional. Mas, sem dúvida, iremos nos valer do instrumental metodológico que estas e outras filosofias proporcionam.

Primeiramente precisamos reconhecer que o brasileiro é mestiço. Isto não é novidade, mas dá, para certas comunidades, o sentimento de inferioridade, buscando macaquear europeus e estadunidenses, por simples ignorância, por desconhecer a história, nossa e deles. Além deste preconceito racista, há a profunda ignorância que a pedagogia colonial, aplicada em nosso País desde a chegada dos primeiros europeus, vem construindo e a comunicação de massa reforçando.

O grande projeto nacional, em minha modesta opinião, é a construção da cidadania.

Para este projeto, que não se esgota numa única ação e exige continuidade, é necessário que todos seus programas sejam discutidos e explicitados amplamente, para atingir integralmente a população brasileira, e constituam também um plano de ação política, referendado pelo voto popular.

O que significa? Como se desdobra? Como se obtém recursos para ele?

Começo conceituando o cidadão. Não uma ideia vaga, referencial, mas de efetiva realidade, objeto de dispositivo legal, normativo. Cidadão é um par, isto é, um igual. Cidadania é a paridade, que permite a participação de todos em igualdade de condições como pessoa humana e brasileira.

Temos neste conceito a única restrição, ser cidadão é, para nosso projeto, ser cidadão brasileiro. O que não exclui que em outros países haja seus cidadãos, britânicos, cubanos ou seja lá quem for.

Para que o cidadão seja um par, um igual, é preciso que se lhe garanta esta condição. E apenas o Estado, com seu poder representativo de todos, pode e deve garantir esta condição. Deste modo, os programas para a construção da cidadania são cláusulas pétreas e para suas execuções haverá, também irredutíveis, recursos orçamentários, humanos e materiais.

Isto já diferencia este projeto das execuções orçamentárias hodieranas, impostas pela banca, que são as dívidas financeiras que tem precedência nos gastos públicos. Do orçamento público, o projeto “construção da cidadania” será destacado e permanente. Daí deve decorrer, como uma consequência, a reforma tributária, garantidora destes recursos.

A construção da cidadania, mesmo sendo um projeto global, com execução simultânea de todos seus programas, deve ser decomposto, não apenas para a organização e gerenciamento técnico, mas para melhor entendimento e vinculação sistêmica.

Em outras palavras, este projeto é um sistema com diversos subsistemas que se entrelaçam e envolvem quase toda ação do Estado. É verdadeiramente um projeto nacional, que decorre de um Estado Soberano, democrático, justo, pacífico e que se expande em todas as dimensões: econômicas, tecnológicas, científicas, sociais, políticas, culturais, ecológicas e, sobretudo, humanas.

Passemos aos três grupos de ações que sustentam a construção da cidadania: a existência, a consciência e a vocalização.

O primeiro grupo – a existência – é constituída de diversos programas que garantem a vida digna para todos os cidadãos.

O programa de renda mínima não é novidade e vem sendo adotado, como inibidor de explosões sociais, até por governos liberais. Ele garante a todo cidadão brasileiro um valor mensal, referenciado ao salário mínimo, que lhe permita viver. Mas este grupo da existência também prevê o atendimento à saúde, nos moldes definidos em 1988 pela Constituição Federal. Igualmente a moradia, que pode ser desenvolvida como no Programa Minha Casa Minha Vida, ou como adotado em Singapura, de aluguel por contrato centenário com o Estado. Há outros modelos que também já foram testados e se mostraram eficazes, sem que algum invalide outro. Todo os programas de saneamento público também seriam incorporados neste grupo da construção da cidadania.

O segundo grupo – a consciência – trata da formação do cidadão. Não se esgota, nem deve ser avaliado pelo adestramento para o exercício de funções econômicas. A principal meta dos programas deste grupo é o desenvolvimento da auto estima, da consciência da nacionalidade, da valorização das culturas nacionais. Embora o processo educacional seja um fio condutor, o programa da consciência abrange todas vertentes da vida – cognitiva, mental, moral – e o reconhecimento. Ensina-se a aceitar as diferenças, a entender o outro, a optar pela paz e pela dignidade. As multiplicidades de trabalhos deste grupo o colocam como de grande importância para construção da cidadania.

O terceiro grupo – a vocalização – vai exigir a retomada pelo Estado da pesquisa científica e tecnológica no campo da informática, do desenvolvimento de hardwares e softwares brasileiros e da não renovação das concessão e da alteração das leis que as regem para canais de rádio e televisão. O Estado não será o único meio de comunicação de massa, a imprensa escrita continuará livre, mas não será mais permitido que interesses estrangeiros usem a comunicação de massa no Brasil para defesa de seus objetivos. E deverá ser amplamente facilitada e valorizada a comunicação pelos canais virtuais, de sorte que todos os cidadãos possam manifestar suas ideias, reivindicações, propostas e ter a atenção dos poderes públicos. Esta será a área de maior mudança do conjunto de programas para formação da cidadania.

Este projeto pode ser qualificado como humanista contemporâneo e se opõe ao liberalismo do século XVIII, na roupagem do século XX, que tem vigido no Brasil desde 1990. Ele coloca a solidariedade no lugar da competitividade, para a formação da sociedade, ou seja, da união e não da oposição entre as pessoas. Ele não é uma proposta de implementação de ideologias dos séculos anteriores, nem mesmo poderia ser chamado de esquerdistas, uma vez que mantém o sistema capitalista de produção. Apenas o regula em favor do povo e não de uma casta de privilegiados, como tem ocorrido em toda nossa história:  o mercado ditando as leis para o Estado.

Será, então, o cidadão livre, consciente, sem dono, que conduzirá o processo civilizatório brasileiro. Assim, podemos entender que a construção da cidadania é um projeto inaugural, um projeto que libertará o Brasil das amarras coloniais, e, sem discriminar pessoas, sociedades, nem ideais, construirá a civilização brasileira.

*Pedro Augusto Pinho é administrador apposentado