Uma noite, assim meio distraído, deparei com um documentário sobre Pelé.
Dois ingleses, Ben Nicholas e David Tryhorn, os diretores.
No título, Pelé – só isso, pra que mais?
O documentário me fez pensar.
Não sei se exagero, mas topo arriscar: tratamos muito mal os nossos ídolos.
Personagens capazes de moldar nossa alma, nossa cultura, nossa arte são olhados muitas vezes de modo oblíquo, assim com um olhar atravessado, e falo especialmente do olhar da esquerda.
Não estou intervindo como alguém distante, mas como integrante da esquerda, e repare: militante de muitas décadas. Isso não me dá autoridade nenhuma, é apenas registro. Não evoco lugar de fala, até porque não gosto da expressão, a mim aparecendo como algo excludente.
Alguém há de duvidar da condição de ídolo do povo brasileiro de um cidadão como Pelé?
Ídolo incrustrado no coração da nossa gente?
Na alma do nosso povo?
Ninguém, penso, duvida.
Mas a esquerda, e não estive fora desse pensamento senso comum de esquerda de pretender ser Pelé uma figura menor, ao tomar esse ou aquele episódio da vida privada, e reduzi-lo, ou ao tomar posições dele diante desse ou daquele governo, torná-lo figura menor por conta disso.
Aquele documentário, com óbvia participação do Rei, de Juca Kfouri, de José Trajano, estes com intervenções a revelar a importância de Pelé, me levou a repensar o papel do menino de Três Corações.
Melhor: de como tratamos, de como a esquerda trata alguns de nossos mais queridos ídolos – queridos do povo brasileiro.
Inadvertidamente, vocês perceberam falei Rei ao referir-me a Pelé.
Ficou na nossa mente a ideia de Rei para tratar dele.
Preciso registrar outra coisa, tão importante ou mais até do que o documentário: a reverência à sua majestade nasceu com Nelson Rodrigues, num texto antológico, de 1958, antes da Copa.
O jornalista analisava um jogo do Santos contra o América, em texto publicado na revista Manchete Esportiva, 8 de março daquele ano.
De cara, o jornalista, com mais de quarenta anos, assustava-se com a idade de Pelé – 17 anos.
Há certas idades aberrantes, inverossímeis – ele dizia.
Aquele garoto andava em campo “com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais”.
Foi nesse momento da linda crônica, o coroação:
“Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”.
Racialmente perfeito, dirá Nelson Rodrigues, “do seu peito parecem pender mantos invisíveis”.
Em suma: “ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor”.
Explicava, o jornalista: realeza é acima de tudo um estado de alma.
E Pelé, aquele menino, levava sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: “a de se sentir rei, da cabeça aos pés”.
Ao apanhar a bola, driblar um adversário, ele o fazia como quem enxota, escorraça um “plebleu ignaro e piolhento”.
Nascia ali a ideia de Rei, da pena de Nelson Rodrigues, dele não se tira esse mérito.
Naquele América e Santos, ele havia enfiado quatro gols em Pompeia.
Houve coisa de Rei naquele jogo.
Pelé, o menino, recebe a bola no meio do campo.
Olha pra frente e o caminho até o gol está entupido de adversários.
Que fazer?
Outro qualquer, teria rapidamente despachado a bola para o companheiro de time mais próximo.
Pelé, o menino, não.
Resolve, com autoridade de Rei, fazer tudo sozinho.
Dribla o primeiro, o segundo, vem um terceiro todo cheio de vontade pronto para arrebentá-lo, sofre um corte rápido, se estatela a ver navios.
Foi embora, impávido.
Destruiu de modo minucioso e sádico a defesa rubra.
Achou demais driblar também Pompeia, e fez o gol.
Para fazer um gol assim, diz o cronista, não basta apenas o simples e puro futebol.
Necessário algo mais.
Aquela plenitude de confiança, “de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível”.
Pelé, na leitura dele, punha-se, ele mesmo, aquele menino, acima de tudo e de todos.
Intimidava a própria bola, que vinha aos pés dele “com uma lambida docilidade de cadelinha”.
lhem só a antevisão de Nelson Rodrigues:]
“Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém”.
É dessa atitude viril e insolente que precisamos, dirá Nelson Rodrigues.
“Sim, amigos:
– Aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.
Ele pergunta:
“Porque perdemos na Suíça para a Hungria? Examinem a fotografia de um e de outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota”.
Falava de jogo da Copa de 1954.
E aí, Nelson Rodrigues conclui, premonitoriamente:
– Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
E tremeram.
E o Brasil trouxe a Copa.
À frente, um Rei de 17 anos.
Disso, dessa reflexão sobre um menino de 17 anos, bem ao jeito Nelson Rodrigues de ser, necessário tirar lições.
Na longa trajetória do Rei, ele afirmou aquele jeito de ser.
Negro a afrontar o mundo racista – sim, isso mesmo.
Não importam as palavras porque, sei, é possível algum contraditório, pretendendo analisar o eventual discurso falado do Rei, discutir deslizes, erros, tropeços, equívocos – quem não os têm?
O maior discurso dele foi o passeio pelo Brasil e pelo mundo exibindo o orgulho negro, peito estufado, afirmando o negro, por cima de tudo e de todos, como diz Nelson Rodrigues.
A bola, o trato admirável com a bola, as tantas e fantásticas vitórias, os incomparáveis gols, o elevaram aos píncaros do mundo, afrontando príncipes, outros reis, brancos fossem.
Não era um preto a olhar ninguém com humildade.
Nunca abaixar a cabeça.
Confrontar, com o orgulho negro, porque negro, o complexo de vira-latas a que refere Nelson Rodrigues, não foi episódico.
Foi algo feito durante toda a vida dele.
E nunca o fez de modo arrogante, curioso isso.
Todos testemunham isso: nada de arrogância.
Era a certeza de poder ser o que era.
A certeza de mostrar aquele talento, nascido da alma do povo negro e pobre, exibir aquele talento para o Brasil e para o mundo.
Uma espécie de tapa na cara do racismo.
Olha aí, nós podemos – ele dizia ao passear pelos campos do mundo, exibindo o sorriso permanente.
E isso não é pouco.
Os negros, as negras do Brasil se orgulham de um homem assim.
Um herói negro, afirmação negra.
Os brasileiros todos se orgulham.
Mais, muito mais, por reparação de tantos crimes, de ontem e de hoje, negras e negros.
Viva Pelé, orgulho negro.
*Jornalista, doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, escritor, deputado federal (PT-BA) Jornalista, doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, escritor, deputado federal (PT-BA)
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