Por Rosecléia Soares – Foto Reprodução

Do tradicional Romantismo até a ascensão do Modernismo na literatura brasileira, houve drásticas mudanças que moldaram as obras literárias nacionais.  De O Guarani (1857), de José de Alencar até Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928), de Mário de Andrade, a representação indígena e a construção da identidade brasileira andaram lado a lado.

Em ambas as obras, o indígena é utilizado para a representação do herói, Peri como o herói perfeito, belo, com princípios inabaláveis, Macunaíma o seu completo oposto. Além disso, a presença, ou não, do negro para a construção dessa identidade e a influência da cultura europeia também estão presentes nesta análise. Essas obras, assim, oferecem diferentes perspectivas sobre a formação da identidade brasileira.

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“O Guarani”, de José de Alencar, teve sua primeira publicação em 1857 e faz parte do período do romantismo literário com a ambientação do período colonial brasileiro. A narrativa gira em torno do amor entre Ceci, uma jovem branca, e Peri, um indígena guerreiro.  Peri, retratado como um herói nobre, corajoso e virtuoso, está sempre pronto a defender Ceci. Sua relação com Ceci é marcada por um amor puro, mas que enfrenta barreiras sociais e culturais da época.

Alencar inicialmente utiliza a obra para explorar a exaltação da natureza e enaltecer as paisagens brasileiras, abordando temas como honra, lealdade e a oposição entre os modos de vida indígena e europeu. A história também oferece um retrato dos conflitos entre colonizadores e nativos, além de explorar a complexidade das relações de duas culturas diferentes no contexto de formação do Brasil.

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Em “Macunaíma: o herói sem nenhum caráter”, escrito por Mário de Andrade, publicado em 1928 fazendo parte do período modernista. A narrativa, diferente de “O Guarani”, apresenta o principal os feitos de Macunaíma, caracterizado como preguiçoso, vaidoso e que faz de tudo para sanar as suas vontades. Ao ser abandonado por sua mãe, Macunaíma e seus dois irmãos saem em uma jornada pelo Brasil e em uma de suas aventuras ganha de Ci, mãe do mato, o amuleto muiraquitã, o qual é perdido. Em busca de encontrar o seu amuleto, Macunaíma vai parar em São Paulo onde tem contato com uma cultura totalmente diferente da sua. Nessa Narrativa, o autor utiliza de elementos mágicos, folclóricos e uma crítica social quanto a identidade brasileira.

Partindo para a análise do discurso de Alencar, “O Guarani” (1857) e Mário de Andrade com “Macunaíma: o herói sem nenhum caráter” (1928), é possível apontar visões divergentes em relação ao indígena e a identidade do brasileiro. Em ambas as obras o indígena é o herói e representante de nossa cultura como uma valorização das características regionais brasileiras, a Dra. Valdivina Melian em seu artigo “Marcas da desconstrução da cultura indígena brasileira nas obras Iracema e Macunaíma” fala sobre essa relação: “A proposta, então, era desenvolver uma estética nacional a partir da valorização de peculiaridades regionais puramente brasileiras. Nessa esteira, tornou-se importante eleger um representante nacional. Pelos registros da/na história oficial do Brasil, assim como pela teoria literária, sabemos que os críticos e os escritores de literatura encontraram no indígena expressão legítima do movimento literário, chamado Romantismo brasileiro. À vista disso, temos a figura representante de um herói nacional.”

A partir disso, na obra de Alencar, o indígena representa o mito do ‘bom selvagem’, ou seja, possui caráter virtuoso e elevado, bondade moral, é guerreiro, e age por ganância, ou glória pessoal, ele não mata por matar, mas sim para alcançar a nobreza. Além disso, era submisso aos brancos como Peri, que vivia para satisfazer as vontades de Ceci como se ele a pertencesse, tendo em vista que essas atitudes são dignas de um herói no romantismo, o caráter do herói épico e seus feitos notáveis, servem como exemplo a ser seguido.

Já no Modernismo, temos Macunaíma, o personagem que é intitulado como o herói sem caráter, ou seja, sem identidade ou “caracteres”, representando uma crítica ao que era ser brasileiro.  Macunaíma, apesar de entrar na categoria de herói, não possuía as mesmas características do herói romântico, pois não tinha limites, era vaidoso, preguiçoso e não media esforços em se satisfazer de alguma maneira.

As características físicas de ambos também implicam na construção do herói, enquanto Peri era descrito como belo, forte, destemido e de uma virtude exemplar,  Macunaíma era totalmente o oposto, gerando assim uma visão mais crítica em relação à realidade brasileira, a qual era o objetivo do movimento Modernista, já que no Romantismo, como afirma o Dr. Eduardo Rouston Junior, especialista em História das Sociedades Ibéricas e Americanas, “O elogio a um índio estilizado, europeizado e  marcado pela civilização, tornava-se instrumento de construção de uma memória  positiva do nosso passado histórico”.

A tentativa de criação da identidade nacional, em ambas as obras sofrem influência da cultura europeia, apesar de a intenção ser oposta. Isto pode ser exemplificado quando Peri deixa sua cultura e se converte ao catolicismo ou quando Macunaíma tem que se adaptar a São Paulo, ambos renunciaram a sua cultura para viver em favor de outra (europeia/branca). Como Macunaíma, que passa a pensar como um homem branco, tornando o livro antropofágico, pois o herói se apropria e se adapta à nova realidade.

Com isso, conclui que a morte de Macunaíma e o “convertimento” de Peri podem ser considerados como a morte de sua cultura indígena ou a racionalização desta. Logo, todo o desenvolvimento da construção de uma cultura exclusivamente brasileira passa por processos de aculturação de todo povo originário da terra, como meio civilizatório e sendo usado como exemplo para as demais gerações.