Por Chico Ribeiro Neto

Esse é o título da matéria que fiz para a revista “Manchete”, publicada em 07/03/1976, número 1.250, com fotos de Artur Ikissima e do arquivo da revista. Aqui, o médico Álvaro Rubim de Pinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e professor titular de psiquiatria na Universidade Federal da Bahia, afirma: “De um modo geral, o médico apresenta uma tendência para supervalorizar o caráter de onipotência e infalibilidade de sua profissão, quando na realidade deveria ficar mais aberto, sobretudo no caso de desequilíbrios que afetam a mente, para poder avaliar com exatidão a influência real dos recursos religiosos”.

Diante da atualidade do tema, reproduzo essa matéria, cuja primeira parte está postada hoje:
“Em todas as regiões do Brasil, os terreiros de candomblé, os centros espíritas ou mesmo algumas tendas de caboclos sempre receberam com frequência a visita de pacientes atacados das faculdades mentais. Até pouco tempo, as famílias um pouco mais abastadas que levavam seus doentes hospitalizados em clínicas psiquiátricas aos pais-de-santo, nos dias de folga, procuravam esconder esta apelação dos médicos e dos amigos. Na realidade, todos os iniciados tinham pleno conhecimento dessas práticas. Mas todo mundo concordava em manter os fatos em segredo.

Há cerca de 10 anos, o médico baiano Álvaro Rubim de Pinho, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria e professor titular de psiquiatria na Universidade Federal da Bahia, decidiu romper a cumplicidade do silêncio e tornar públicas tais práticas. Rubim de Pinho se recusa a aceitar a qualificação de pioneiro no assunto. Explica que, antes dele, três grandes figuras já se haviam interessado de perto por estes estudos: Nina Rodrigues, Artur Ramos e Estácio de Lima. As pesquisas de Rubim de Pinho têm sido apresentadas em congressos médicos de nível internacional, e, apesar da hostilidade inicial de alguns psiquiatras da escola ultra-racional, a própria Organização Mundial da Saúde já tomou consciência da “utilidade social de certos tipos de curandeiros no tratamento das doenças mentais”.

Rubim de Pinho parte dos fatos concretos: no Brasil, quando um indivíduo acusa um desequilíbrio mental grave, é muito mais comum do que se poderia pensar o recurso a uma estranha simultaneidade de terapias. A família confia o doente ao psiquiatra, mas, ao mesmo tempo, procura consultar o médium espírita mais famoso ou uma mãe-de-santo conhecida.

O médico, segundo Rubim de Pinho, não pode desconhecer essa psiquiatria folclórica. “É necessário distinguir, no quadro clínico, o que é patogênico daquilo que é patoplástico, sabendo compreender, nesse conjunto, os elementos espirituais valorizados pelas seitas.”
De um modo geral, afirma o professor, o médico apresenta uma tendência para supervalorizar o caráter de onipotência e infalibilidade de sua profissão, quando na realidade deveria ficar mais aberto, sobretudo no caso de desequilíbrios que afetam a mente, para poder avaliar com exatidão a influência real dos recursos religiosos.

É interessante conhecer a opinião das mães-de-santo a respeito do assunto. Olga de Alaketu, senhora de um dos terreiros de candomblé mais célebres da Bahia, coloca o problema em termos bastante simples, mas que, no fundo, apresentam grande interesse para um estudo científico.
“Quando o problema é puramente nervoso”, diz ela, “aí só o médico pode resolver. Mas quando se trata de negócio de espírito, isto é, de entidades perturbadoras que penetram na vida do indivíduo, aí não existe médico no mundo que dê jeito. Aquele nervoso aparente não é nervoso; é coisa espiritual que só se resolve no terreiro”.

Mãe Olga revela que já curou dezenas de casos de doenças do espírito. “Em primeiro lugar, quando a pessoa chega às minhas mãos, vou trabalhar para procurar sentir aquilo de que ela está mais precisando. Trato o doente com muito carinho e, se for o caso, até guardo a pessoa em minha casa o tempo necessário”.

Olga explica que, durante as sessões de tratamento, fica observando os momentos de “volta da consciência”, para poder fazer com que o paciente recobre o mais possível essa consciência “sem agitação e sem aperreio”.

Ela acaba sempre descobrindo qual é a entidade sobrenatural (espírito) que está perturbando o indivíduo. Nesta fase, às vezes é necessário recorrer a um ebó, isto é, trabalho de despacho que comporta sacrifício de aves, oferenda de farofa de azeite de dendê, charutos, pipocas e velas, colocados em certos locais especialmente indicados para o ritual, sobretudo as encruzilhadas.

Olga de Alaketu cita um exemplo recente: “Há algum tempo chegou a minha casa uma moça de 17 anos atacada de histeria. Na casa dela, dava ataques frequentes, durante os quais ficava dura e se urinava todinha. Ela chegou no terreiro levada pelo psiquiatra, acompanhada de seu pai e de um tio. Ficou sendo tratada ao mesmo tempo pelo psiquiatra e por mim. O médico curou de um lado e eu, do outro, amansei a entidade. Esta moça hoje vive tranquila em sua casa, nunca mais teve ataques e já retomou até os estudos”.
(Continua no próximo domingo)

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